quarta-feira, 11 de julho de 2018

Devaneios

Li em um desses escritos de muro "He olvidado mis ojos en algun lugar del paisaje." E Fernando Pessoa, como algum heterônimo, disse escrever para diminuir a febre das sensações, e então, fazia paisagens com o que sentia. De quantas paisagens somos feitos e o quanto recorremos a elas, diariamente, em cada pouso inesperado da mente? São incontáveis. E, assim como tudo que é vivo, cresce à medida do cultivo. Se voluntário ou não, não sei se cabe descobrir, mas a dimensão desses cultivos diários e cada vez mais profundos, vão criando raízes cada vez mais dentro, e dentro, e dentro. Talvez por isso às vezes a gente sinta que pode virar do avesso. Há de dar mais espaço a algumas paisagens que teimam em, além de crescer, se reinventar. Que insistência a nossa em dar nome e endereço às coisas de dentro, sim, eu também me pergunto o porquê tentar desvendar tanto mistério. Cada cabeca, um mundo, cada mundo, um mistério. Vida, doce mistério, já dizia Caetano. Onde é que acertamos os sabores, no paladar ou nos objetos? O amargo e o doce estarão disponíveis ou são mera percepção de quem degusta? A saber... A saber.

terça-feira, 26 de junho de 2018

"Socorro" ao inverso, existe?

"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações." (F.P)

E eu, ré confessa, digo:
Pulsam, de ideias à sensações. Pulsar e existir. Há momentos em que não há como escolher entre um ou outro. "Pulso, logo existo." Como é dolorosa a febre de sentir. Não sentir, igualmente. Poder escolher? Creio que não. Seguir, sem saber escolher o lado para o qual quero me voltar: a unica saída, apesar de abafar em si todas as outras igualmente possíveis. 

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Vida doce mistério

O que é desperdiçar a vida?
Ela não é um líquido mensurável, que de vez em quando escorre e se perde. Não é igual chuva que às vezes cai, outras só da indícios. Que a vida existe e não estamos mortos. É a única certeza. Como ela se processa, no interior de cada ser que é dito vivo, é outro mistério, quase tanto quanto a morte. Não basta ser chamado de vivo. Há animais que duram um dia. Alguns, horas. Nós, anos, e a cada novo ano fechamos um ciclo de balanço: o que estou fazendo com a minha vida? O que quero fazer dela, em diante? A gente às vezes até sabe responder, mas vai vivendo a vida e já não lembra mais. A gente, dos animais, deve ser dos mais esquecidos. Nasce sabendo viver, cresce contando com a morte. Se a gente teve medo de nascer? Quem consegue dizer? Mas da morte, tão simples quanto chegar ao mundo, temos medo. Temos medo de deixá-lo. Medo de deixar as coisas. Medo de viver as coisas. Medo de ser. Medo de sentir. Medo de encarar. Medo de bancar. Bicho medroso esse ser humano. Pensa e sente medo. Vive vivendo o medo. Viver o medo é matar o que ainda não foi. É não dar espaço pra nada crescer. É negar que estamos vivos, somos bicho solto, que nasceu pra se fazer pelo caminho. Não é a toa que não nascemos prontos. Somos dependentes por anos e anos, aprendemos cada gesto, passo, palavra, para nos fazermos pelo caminho. Somos agulha e tecido, se construindo por onde a gente passa. Somos gente.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Mãe

Mãe.
Foi com ela que eu aprendi a força das coisas sutis. Foi com ela que eu aprendi, também, a descobrir que as pessoas são feitas de fraquezas. Ela nunca teve muito medo de dizer que não sabia. De se revelar, de mostrar onde doía, a parte que faltava. Isso me incomodava um pouco. Eu queria que ela fosse uma fortaleza, um lugar sempre seguro onde eu pudesse me ancorar. E daí, com o tempo, eu percebi que eu sempre estive ancorada, mas numa espécie muito única de fortaleza. Que com delicadeza e discrição me oferecia muito. Me dava colo. Me levantava. Dividia comigo as dores e as delícias de cada conquista, cada passo. Cada tropeção.
Quando virei mãe, então, eu entendi algumas coisas. Entendi que não se pode doar ao outro aquilo que falta em si. Que não se sabe cuidar de alguém sem perceber (e gritar) às vezes que precisamos de cuidado, também. Entendi o peso que se carrega quando, emprestando uma nova vida ao mundo, nos tornamos duplamente responsáveis por ele. Entendi o porquê mostrar as fraquezas, algumas dores, algumas perguntas, a quem quer que você seja uma fortaleza que sempre está lá: porque a gente corre o risco, sem saber, de acreditar nisso e fazê-los acreditar que existe um existir humano assim. Se existe, está ao menos enterrado em camadas e camadas de uma pessoa real. Ainda falta muito pra entender. E às vezes tenho saudade de ser apenas filha. Mas compartilhar o mundo com você foi muito do que me construiu. E muito do que constrói meu filho. Quando vivemos esses momentos, que não são tão bons, que eu gostaria de ter sido outra, ou ter feito diferente, penso: eu também o apresento o que é ser humano. E, às vezes, não dá pra entender, a gente só vive. E passa. E vai se construindo. Se eu tivesse sabido antes que você também estava se construindo... Talvez tivesse sido diferente. Mas não teria sido eu e você.

domingo, 22 de abril de 2018

Processo

Vejo como um desabrochar da casca. Ela vai ficando seca, velha, até que não suporta e racha. E mesmo que seja aos poucos, cai, igual a cobra que troca de pele. O que está morto precisa ir embora, é uma lei da natureza. Ainda que o processo seja lento e por vezes dolorido, é necessário.
O que virá daí, depois?
Qualquer coisa que não o que era antes. E essa é a beleza também que se tem em qualquer coisa que nasce. É incerto e genuíno, carregado de força pra seguir desabrochando. E crescendo.
Água e sol. Igual as plantas. Mas com emoções mais complicadas. A gente esquece que é feito de carne e só alimenta a cabeça. A hora agora é de cuidar de quem a sustenta!

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Inspira ção

Até a Aretha. Tudo era semelhante, algumas coisas talvez, mas a maioria ele pintava. Deixava rastro. Igual o raio de sol quando vai entrando, miúdo, e tingindo as cores de vida. Ele tingiu tudo. Mergulhou cada pedaço num oceano de novas cores. Tentei resistir, como quem sente a onda puxar na beirada da praia. Não pude. Quando vi, já me afogava e não tinha pressa de ir embora. Mergulhei, também. Em alguns momentos quis voltar, sentia falta de alcançar o chão. Tudo era muito instável e imenso, tudo oscilava entre o yin e o yang, não chegava ao equilíbrio. Mas que sol, que belo sol. Obrigada por ter entrado, ainda que eu não quisesse muito abrir a cortina, e resistisse a descobrir o que se escondia por trás dela. Você trouxe um belo e novo dia de sol.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Vôo raso

Me lembro de quando entendia do porquê gostava de viver. Havia um certo mistério, em tudo. Havia possibilidades. O cotidiano era uma contínua busca por sentidos. Eu me sentia, de alguma maneira, livre. Os campos do conhecimento só se abriam: eu era incentivada a questionar; a buscar compreender; a duvidar; a fazer meu próprio caminho. O mistério continuava: se somos para sempre inacabados não há nunca verdade absoluta. Eu via tudo com olhos curiosos e atentos: e agora, o que me reserva? E agora, como será isso? E agora, o que há para além disso? Às vezes, como passarinho que sente saudade do ninho, eu voltava e me aninhava em sólidas certezas. Mas era só recuperar um pouco de equilíbrio e eu já voltava a voar. Escrevia, lia, criava, me reinventava. Me punha em questão. Senão toda hora, ao menos todo dia. E o mistério continuava. O mistério era meu segredo do porquê gostava de viver. Era um dos meus sentidos da vida. A certeza de que não temos certeza de nada.
Mas chegou um momento em que eu tive uma certeza. Ou me agarrei a ela com medo de me perder na tempestade. E depois tive outra. E então outra. E fui me solidificando. O que voava virou concreto. O mistério virou decepção. E uma certeza triste, melancólica, sem esperança, cresceu. Me vi presa numa gaiola de verdades que não só ajudei a construir, mas aceitei.
Mas há uma coisa, nisso tudo, que eu não consigo aceitar, e com o que venho lutando, dia a dia, pra me desfazer: a não vontade de viver. Porque ela não é feita de um só sentido como era meu ingênuo e curioso mistério. Ela é feita de galhos, vários galhos de uma árvore que cultivei porque precisava ter uma certeza. A certeza que eu precisava continuar vivendo. Da mesma maneira, ou não, mas continuar. E esse continuar foi, na verdade, uma quebra. Caí e não consigo ainda me levantar. E parece não existir muitas palavras que signifiquem. Afinal, o que é um significado? Senão um fim?